24 de março de 2016

Jet Lag


\'dʒɛt læg\ [Língua: Inglês]

locução substantiva (1969)
alteração do ritmo biológico de 24 horas consecutivas, que ocorre após mudanças do fuso horário em longas viagens de avião, caracterizada por problemas físicos e psíquicos, esp. do ciclo do sono, devido a distúrbio dos níveis hormonais de hidrocortisona [Mais frequente em viagens para o leste (que encurtam o dia) do que para o oeste.]

***

“Vcs não voltam mais não? Recomendo que não voltem mesmo.”

Restavam ainda alguns dias de viagem quando recebi essa mensagem de uma amiga querida. Sendo ela uma amiga querida, e bem-humorada, entendi rapidamente que fazia referência ao bizarro ambiente político, econômico e social que nos aguardava.

Mas ainda restavam alguns dias de viagem, o céu já não era o do Tejo, nem ostentava aquela paleta de laranjas e rosas. A temperatura começava negativa e não passava dos 7 graus. Estávamos em Amsterdam, Amsterdã, Amesterdão.

A viagem de Madri parece coisa de outra vida e a temporada de Lisboa sabe a passado, leio no caderninho amarelo. Em três páginas, oito vezes escrevi “frio”. A ocorrência de palavras como “inverno”, “chuva”, “calefação”, “chocolate quente”, “café” e “chá de menta fresca” torna o rascunho um eficiente termômetro da viagem.

Só que escrevo agora, recorrendo à memória mental e escrita, num calor ameno, sentada na minha cadeira, 13 dias depois de aterrissar no Rio, já com saudades e com o sentimento de que nada faz muito sentido num momento em que tudo se tornou desimportante – muito menos escrever um blog destinado à estadia em outro país.

Então folheio o caderno e relembro o instante em que quase fui esmagada pelas portas do trem que liga o aeroporto de Schiphol à Estação Central de Amsterdam. Relembro a chegada à praça da estação, o deslumbramento nos olhos do Tico, minhas mãos geladas carregando os 28 quilos de roupas e livros por sobre os trilhos do tram, as ruas planas, limpas e eficientes da cidade, a miríade de cafés e mercearias e bistrôs aconchegantes, charmosos, hipsters. A eloquência e a gentileza dos holandeses e seu espanto diante de turistas que pedem informação sobre como chegar andando a determinado destino: “Vocês não estão de bicicleta?!”.

E me lembro da tarde em que ouvi a poesia contemporânea brasileira ser apresentada, em inglês, pelo meu poeta favorito, a uma plateia de brasileiros, portugueses e holandeses, em um edifício construído em 1880 – originalmente uma garagem de carruagens  que hoje abriga o Teatro Munganga.

Provavelmente não faz mesmo muito sentido escrever sobre isso já no Brasil e publicar este texto num blog chamado O céu do Tejo, sobretudo neste momento que atravessamos.

Descabido dizer que pela primeira vez entendi de fato o que é jet lag e que à descrição do Houaiss eu acrescentaria ainda “choque térmico” e “choque (sic) democrático” (gracias, Panga).

Mas é que faz 13 dias que aterramos e sinto uma saudade enorme de ouvir “aterrar”, “imenso”, “se calhar”, “engate”, “beijinhos” e “descolagem” – ainda que a TAP estrague a minha mala e me submeta a 10 horas de voo sem a possibilidade de assistir a um filme. É que faz 13 dias que aterramos e preciso registrar essa viagem, não me esquecer das pessoas, dos bichos.

Falar de Momo, António, Mallu, Marcelo, Luísa, Inez, Pierre, Anas, Marisa, Carla, Alexandra, Irina, Joaquim, Yara, Shanti, Bibiana e Joris. Contar de Albano, o gato lutador de sumô, que exige carinho com cabeçadas potentes e atrapalhadas, e da pequenina Mitsy, gata com olhos de desenho animado, miado frágil de bibelô. Falar dos papagaios clandestinos contrabandeados do Brasil por uma velhinha holandesa que vivia no Vondelpark, e de como eles se reproduziram e se espalharam por Amsterdã. E sobre como essa história novelesca torna a cidade muito mais real, menos perfeita e, por isso, mais atraente.

Para que escrever sobre isso tudo, aqui no Rio, amenos 26 graus, sujeitos a trovões, panelaços e guerra civil?

Escrever sobre isso tudo, sentada aqui na minha cadeira, o gato vagando pelo escritório e o sentimento de que no fundo ainda não voltei. 

2 comentários:

  1. Adorei o "história novelesca", merengue, pq sempre suspeito de quem fala mal de novela, embora ache q vc esteja se referindo mais ao gênero literário do que ao televisivo.

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  2. Eu acho que essa história renderia uma ótima novela - televisiva e literária. Imagina essa velhinha como uma personagem de Gilberto Braga, que maravilhoso?

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