30 de setembro de 2011

Parte II

Nada melhor para ilustrar o tema realidade X ficção do que outra história envolvendo Eça e seus Maias. Após a publicação – legal – do livro, um cronista famoso à época escreveu um texto no jornal criticando o desrespeito do escritor ao ridicularizar e colocar em seu livro uma pessoa real. O personagem poeta Tomás de Alencar, seria, claramente, o poeta Bulhão Pato. E quando a professora disse isso em sala de aula, a realidade deu cambalhota diante de mim: Bulhão Pato é algo que conheço, que muito me agrada, Bulhão Pato me soa a felicidade. Felicidade gastronômica. Amêijoas a Bulhão Pato!!!!!


E o Eça diante de tal acusação? Manda de Paris uma resposta sensacional, mordaz, inteligente, explica que Tomás de Alencar foi sim inspirado em alguém que conheceu – outro alguém – e pede, com humor, a Bulhão Pato “o obséquio extremo de se retirar de dentro do meu personagem”. 


29 de setembro de 2011

Realidade, ficção e pirataria


Fazia tempo, um bom tempo, que não sabia o que era passar quatro horas em uma sala de aula. No começo do mês relembrei durante um curso de verão chamado “Realidade e ficção portuguesa no século XX”. Foram duas semanas, seis aulas, seis autores, 11 livros. Éramos quatro estrangeiros (outra brasileira, uma italiana e um catalão), quatro senhoras e uma moça portuguesas, além da também portuguesa professora, claro.  

Poderia falar do humor e sensibilidade do Almada Negreiros em A invenção do dia claro, da descoberta de Herberto Helder e seu belíssimo Os passos em volta, da literatura político-surrealista de Mário-Henrique Leiria e de seus Contos do Gin Tonic, mas, para além disso, há o fato de que cada aula era uma oportunidade de ouvir os portugueses – as portuguesas, melhor dizendo – falar imenso. Suas expressões, como estruturam as frases, como pensam, o que ignoram. Então, mesmo quando a professora se perdia, fugia do tema, lá estavam as anedotas, a história do país, as histórias de cada uma, os causos. Meus preferidos envolvem “O” escritor português – que, vejam só, é anterior ao século XX, não constava do currículo.

Pois o senhor Eça de Queiroz estava em Bristol escrevendo Os Maias. Enviava, então, por correio, os capítulos a Lisboa para serem revisados. O tempo passava e nada do retorno dos textos, nada de o livro sair. Eça pede a um amigo que intervenha e acaba por descobrir o problema: um tipógrafo estava a fazer cópias piratas e enviá-las ao Brasil. Sim! A primeira edição de Os Maias publicada foi uma versão pirata vendida no Brasil, onde Eça já era um enorme sucesso.
Isso é o que eu chamo de pioneirismo.

*continua amanhã


4 de setembro de 2011

Volver

Estranho voltar pela primeira vez a um lugar onde se viveu. Sair do metrô e dar de cara com a Gran Vía, ali, imponente. Vejo os prédios, as lojas, mas logo percebo que todas as lembranças de lugares virão acompanhadas de lembranças de momentos, de cenas. O cinema onde Ethan Hawke me avisou, em bom espanhol, que a maioria das salas em Madrid exibe filmes dublados; o restaurante bufê apresentado por uma amiga; o locutório em que fui furtada e onde passei horas na internet e ao telefone. Melhor (tentar) sintetizar em tópicos ou imagens.
As novidades (pra mim, claro):
- Caixa Forum Madrid: El Paseo del Prado ganhou mais um centro cultural. O prédio é bonito e bacana, as exposições são ótimas e a livraria/loja adorável. E é gratuito. Coladinho com o Reina Sofía.
- El matadero: “Centro recreatico de creación contemporânea”, é o que eles dizem. Antigamente matavam-se bois aqui. O projeto ainda não decolou mas é uma boa ideia. Armazéns revitalizados, espaço para exposições, música ao vivo – e gratuita. Pena que a comida era um simulacro da boa comida. Calamares e croquetas deixaram a desejar.
- Finca de Susana. Nem é novidade, já existia quando morei em Madrid, mas nunca havia comido lá. Delícia. O Arroz negro de sépia (ou seja, com a tinta da lula) é de comer ajoelhado. Assim como os chipirones (filhotes de lula) a andaluz. Tem cara de chique, mas é barato! Pena que os garçons sejam um tanto quanto bordes.
O que não mudou:
- O pulpo a la plancha do Maceiras. Melhor polvo da vida. O arroz de marisco (arroz marinero) também continua delicioso e farto. E o ambiente descontraído – alô comercial veiculado nas madrugadas da Bandeirantes.
- Meu embasbacamento com o museu do Prado e com o Thyssen. Do primeiro, fico com Bosch e as pinturas negras de Goya. Do segundo, com Lucian Freud, Hoper e Michael Andrews (grata descoberta).
- O perfil notívago dos espanhóis e o fato de a praça, o parque, enfim, as ruas, serem públicos – e usados. Pais com crianças, jovens, casais, senhores; todos estão na rua. Alguns bebem, outros leem, outros brincam. A rua é de todos até altas horas.
- A mala ostia dos funcionários da Easyjet. Vale-dor-de-cabeça está incluso na passagem.
O imperdível:
- Ermita de San Antonio, no paseo de la florida. Uma pequena capela que conserva afrescos pintados por Goya em 1798. Mas não são quaisquer afrescos. Seus anjos são de uma beleza difícil de explicar (e esquecer), suas escolhas, nada óbvias. As cores impressionam e ali, entre um personagem e outro, está um prenúncio do que ele viria a fazer em suas pinturas negras (igualmente imperdíveis, expostas no Museo del Prado). É curioso que a capela-museu, superbem conservada, tem entrada gratuita, uma sala em que é exibido um documentário bem bacana sobre a restauração da igreja e dos afrescos. Por 1 euro, compra-se um livrinho excelente com reproduções dos afrescos e história detalhada da Ermita, que a sua esquerda tem uma irmã gêmea, construída para acolher os fieis - e preservar corpo e obra de Goya. No site da prefeitura de Madrid é possível ler mais sobre a Ermita.
O que mudou:
- A praça Tirso de Molina, antes – falo de 2004-2005, quando morei em Madrid – reduto de “junkies e drogadictos”, finalmente virou a Plaza de las Flores. Ainda tem um mendigo ou outro de estimação, mas recebeu quiosques de flores, uma terraza e canteiros com plantas.
- O Museo Reina Sofía, expandido, com seus dois elevadores panorâmicos. A parte mais bonita é o jardim.
- Eu. Ter 29 anos é diferente de ter 22. Pesando prós e contras, a idade atual ganha de lavada.