27 de outubro de 2011

Porto. Em frente ao cemitério.


– Por favor, por favor, tira uma foto.
– Ah, não, coitado do cara.
– Ah, vai, para de besteira. Isso é muito engraçado!
– Pô, o cara tá morto.
– Ele tá morto, mas nós estamos vivos!

[FOTO]

– A menina está a olhar para o cemitério? – pergunta uma senhorinha manca, de olhos muito vesgos e usando boné.
– É, estou.
– Pois vou lhes contar uma história deste cemitério. Vocês sabem quem foi Sá da Bandeira?
– Só de nome.
– Ah, não são daqui?
– Não.
– Mas falam muito bem português!
– É que nós somos brasileiros... – diz o Tico, sem graça.
Ela pelo menos fala muito bem português – manda a senhorinha, para nossa estupefação. E continua – Houve um incêndio no Teatro Sá da Bandeira. As pessoas queriam fugir e ficaram presas naquelas portas de girar. Uns pisaram nos outros, morreram todos queimados. Os ossos estão aí nesse cemitério, num canteiro redondo, estão todos aí.
– Ah... Bem, boa tarde pra senhora. Até logo.

Dois passos à frente, eu ouço do Tico:

– Fica brincando com defunto, aparece logo uma alma penada. 

Família de Manuel Pinto Bizarro

30 de setembro de 2011

Parte II

Nada melhor para ilustrar o tema realidade X ficção do que outra história envolvendo Eça e seus Maias. Após a publicação – legal – do livro, um cronista famoso à época escreveu um texto no jornal criticando o desrespeito do escritor ao ridicularizar e colocar em seu livro uma pessoa real. O personagem poeta Tomás de Alencar, seria, claramente, o poeta Bulhão Pato. E quando a professora disse isso em sala de aula, a realidade deu cambalhota diante de mim: Bulhão Pato é algo que conheço, que muito me agrada, Bulhão Pato me soa a felicidade. Felicidade gastronômica. Amêijoas a Bulhão Pato!!!!!


E o Eça diante de tal acusação? Manda de Paris uma resposta sensacional, mordaz, inteligente, explica que Tomás de Alencar foi sim inspirado em alguém que conheceu – outro alguém – e pede, com humor, a Bulhão Pato “o obséquio extremo de se retirar de dentro do meu personagem”. 


29 de setembro de 2011

Realidade, ficção e pirataria


Fazia tempo, um bom tempo, que não sabia o que era passar quatro horas em uma sala de aula. No começo do mês relembrei durante um curso de verão chamado “Realidade e ficção portuguesa no século XX”. Foram duas semanas, seis aulas, seis autores, 11 livros. Éramos quatro estrangeiros (outra brasileira, uma italiana e um catalão), quatro senhoras e uma moça portuguesas, além da também portuguesa professora, claro.  

Poderia falar do humor e sensibilidade do Almada Negreiros em A invenção do dia claro, da descoberta de Herberto Helder e seu belíssimo Os passos em volta, da literatura político-surrealista de Mário-Henrique Leiria e de seus Contos do Gin Tonic, mas, para além disso, há o fato de que cada aula era uma oportunidade de ouvir os portugueses – as portuguesas, melhor dizendo – falar imenso. Suas expressões, como estruturam as frases, como pensam, o que ignoram. Então, mesmo quando a professora se perdia, fugia do tema, lá estavam as anedotas, a história do país, as histórias de cada uma, os causos. Meus preferidos envolvem “O” escritor português – que, vejam só, é anterior ao século XX, não constava do currículo.

Pois o senhor Eça de Queiroz estava em Bristol escrevendo Os Maias. Enviava, então, por correio, os capítulos a Lisboa para serem revisados. O tempo passava e nada do retorno dos textos, nada de o livro sair. Eça pede a um amigo que intervenha e acaba por descobrir o problema: um tipógrafo estava a fazer cópias piratas e enviá-las ao Brasil. Sim! A primeira edição de Os Maias publicada foi uma versão pirata vendida no Brasil, onde Eça já era um enorme sucesso.
Isso é o que eu chamo de pioneirismo.

*continua amanhã


4 de setembro de 2011

Volver

Estranho voltar pela primeira vez a um lugar onde se viveu. Sair do metrô e dar de cara com a Gran Vía, ali, imponente. Vejo os prédios, as lojas, mas logo percebo que todas as lembranças de lugares virão acompanhadas de lembranças de momentos, de cenas. O cinema onde Ethan Hawke me avisou, em bom espanhol, que a maioria das salas em Madrid exibe filmes dublados; o restaurante bufê apresentado por uma amiga; o locutório em que fui furtada e onde passei horas na internet e ao telefone. Melhor (tentar) sintetizar em tópicos ou imagens.
As novidades (pra mim, claro):
- Caixa Forum Madrid: El Paseo del Prado ganhou mais um centro cultural. O prédio é bonito e bacana, as exposições são ótimas e a livraria/loja adorável. E é gratuito. Coladinho com o Reina Sofía.
- El matadero: “Centro recreatico de creación contemporânea”, é o que eles dizem. Antigamente matavam-se bois aqui. O projeto ainda não decolou mas é uma boa ideia. Armazéns revitalizados, espaço para exposições, música ao vivo – e gratuita. Pena que a comida era um simulacro da boa comida. Calamares e croquetas deixaram a desejar.
- Finca de Susana. Nem é novidade, já existia quando morei em Madrid, mas nunca havia comido lá. Delícia. O Arroz negro de sépia (ou seja, com a tinta da lula) é de comer ajoelhado. Assim como os chipirones (filhotes de lula) a andaluz. Tem cara de chique, mas é barato! Pena que os garçons sejam um tanto quanto bordes.
O que não mudou:
- O pulpo a la plancha do Maceiras. Melhor polvo da vida. O arroz de marisco (arroz marinero) também continua delicioso e farto. E o ambiente descontraído – alô comercial veiculado nas madrugadas da Bandeirantes.
- Meu embasbacamento com o museu do Prado e com o Thyssen. Do primeiro, fico com Bosch e as pinturas negras de Goya. Do segundo, com Lucian Freud, Hoper e Michael Andrews (grata descoberta).
- O perfil notívago dos espanhóis e o fato de a praça, o parque, enfim, as ruas, serem públicos – e usados. Pais com crianças, jovens, casais, senhores; todos estão na rua. Alguns bebem, outros leem, outros brincam. A rua é de todos até altas horas.
- A mala ostia dos funcionários da Easyjet. Vale-dor-de-cabeça está incluso na passagem.
O imperdível:
- Ermita de San Antonio, no paseo de la florida. Uma pequena capela que conserva afrescos pintados por Goya em 1798. Mas não são quaisquer afrescos. Seus anjos são de uma beleza difícil de explicar (e esquecer), suas escolhas, nada óbvias. As cores impressionam e ali, entre um personagem e outro, está um prenúncio do que ele viria a fazer em suas pinturas negras (igualmente imperdíveis, expostas no Museo del Prado). É curioso que a capela-museu, superbem conservada, tem entrada gratuita, uma sala em que é exibido um documentário bem bacana sobre a restauração da igreja e dos afrescos. Por 1 euro, compra-se um livrinho excelente com reproduções dos afrescos e história detalhada da Ermita, que a sua esquerda tem uma irmã gêmea, construída para acolher os fieis - e preservar corpo e obra de Goya. No site da prefeitura de Madrid é possível ler mais sobre a Ermita.
O que mudou:
- A praça Tirso de Molina, antes – falo de 2004-2005, quando morei em Madrid – reduto de “junkies e drogadictos”, finalmente virou a Plaza de las Flores. Ainda tem um mendigo ou outro de estimação, mas recebeu quiosques de flores, uma terraza e canteiros com plantas.
- O Museo Reina Sofía, expandido, com seus dois elevadores panorâmicos. A parte mais bonita é o jardim.
- Eu. Ter 29 anos é diferente de ter 22. Pesando prós e contras, a idade atual ganha de lavada.

24 de agosto de 2011

Extra! Extra!


Um blog tão garoto, tão mirim, e já com pretensões expansionistas?
Pois é, parto amanhã para Madrid. Será um reencontro aguardado há anos.
A ver...

Foto: estátua do jornaleiro, abaixo do memorial a Eduardo Coelho, fundador do Diário de Notícias, no Miradouro de São Pedro de Alcântara.


22 de agosto de 2011

Sexta, às 2h, no bar:

- Vocês são do Rio de Janeiro? Eu estive em vossa cidade.
- Ah, legal. Gostou?
- Olha, vou lhes dizer, ali há muito que melhorar em termos de segurança. E olha que eu estive na melhor zona. Zona alta, estive ali mesmo na Visconde de Pirajá.
- Zona alta?
- É, de gente da alta.
[ Alta sociedade, intervém o garçom]
- Meu amigo que mora há muitos anos lá definiu a cidade: “Pedro, garoto, isso daqui é a mistura do luxo com o lixo”.
- É, é verdade...
- De Copacabana, não gostei. Ali tem muito do lixo. Ipanema, Leblon, Santa Teresa, Botafogo estão bem. Fui à Baronetti, vocês devem conhecer, aquilo é bom.
- É, a gente sabe onde é...
- Mas aquilo lá precisa ainda melhorar muito em termos de segurança.
- Somos uma democracia jovem, há muito por fazer...
- Vocês precisam valorizar os índios! – diz outro cliente do bar, de passagem.
- Vocês não sabem, nós sabemos, mas a grande coisa que aconteceu ao Brasil foi o Lula. Ele fez muito pelo país.
- Sem dúvida. Nós gostamos dele...
- Pá, você me desculpe, mas eu vou dizer: sou um gajo de esquerda.
- Ah...
- O que tem que ser feito no Brasil é aumentar a classe média. Essa é a diferença da Europa. Porque, veja bem, eu sou um gajo de esquerda, então, penso que não pode haver um bairro onde só há um tipo de gente metida ali. Senão começam a haver...
- Guetos.
- Isso, guetos. Pois, se você mete num bairro ciganos e gente normal o que vai a passar é o que acontece nos filmes: o rico vai casar com o pobre, e o cigano vai ver que não precisa... viver feito cigano.
- Ah...
- Vocês me desculpem, é que sou um gajo de esquerda.
+++
Desde que cheguei não houve uma única pessoa que conseguisse dar uma informação sem confundir esquerda com direita. A boca diz uma coisa, a mão vai para o lado oposto. Talvez todos sofram de ambilevidade – inclusive o Pedro.

16 de agosto de 2011

De noite e de dia


O que não faltam aqui no Chiado/Bairro Alto são ruelas fofas, com bares e lojinhas bacanas. A minha rua fervilha quase todas as noites com hordas de gringos e de portugueses, em menor número.
Mas há uma rua que tem tudo para ser a minha preferida, a Rua da Bica. Estive nela num sábado à noite e aprendi que em Lisboa a noite funciona da seguinte forma: começa no alto e vai terminar no Tejo. A Rua da Bica está no ponto intermediário e parece atrair mais lisboetas do que as demais. As pessoas ficam na rua e nos muitos bares, quase todos fazendo alusão à rua em seus nomes (Bicaense, Estrela da Bica e por aí vai).

Hoje voltei de dia à Bica. Parece outra, calma e silenciosa, cortada apenas por seu elevador. Os bares ainda não abriram e é possível ver melhor a arquitetura das casas e o emaranhado de cabos que cria formas geométricas no céu. Vale ler mais sobre a rua neste blog bacana sobre as ruas de Lisboa.
A gratíssima surpresa do passeio da tarde foi o pequeno estabelecimento que atende por A Vizinha. Móveis dos anos 50 e 60, vasos de plantas e temperos na vitrine, este misto de mercearia e bar é o tipo de lugar que dá vontade de imitar em outras cidades. Almoço natureba e delicioso – nunca pensei que suco de cenoura, maçã e gengibre pudesse ser tão bom – o bar (?) está aberto há pouco mais de um mês. É comandado pelo Jorge e pela Ligia que preparam as comidas na hora e de acordo com o que há na casa – o meu suco foi a opção diante da falta de melancia. O clima é informal e acolhedor. As placas avisam: não há serviço de mesa. O cliente tem que ir até o balcão buscar o pedido. Se for uma salada de feijão ou uma tosta de queijo de Nisa, valerá a pena.
+++
No tal sábado em que estive na Bica, a noite terminou em um estabelecimento sui generis. Nada de cachorro-quente ou filé com queijo para aplacar a fome da madrugada e reunir os mais boêmios. No Sol e Pesca o que se come são enlatados. Atum, polvo, salmão e mais uma penca de bichos do mar preparados das mais diferentes formas e prontos para consumir. Ao atendente mal humorado cabe apenas abrir a lata, fatiar o pão e uma rodela de limão. Fica lotado. Taí outra ideia que estou pensando em imitar.


Deu na Time Out Lisboa & Algarve


Parte dos portugueses está indignada com os Smurfs – ou pelo menos o autor que assina a resenha do filme na revista. O motivo é que para a geração que cresceu na década de 70 e 80 os homenzinhos (e mulherzinha!) azuis são conhecidos como Estrumpfes (pronuncia-se Estrunfes).

Curioso que outro dia estava assistindo a TV e vi o desenho dos Smurfs – devia ter uns 20 anos que não via um – e me chamou atenção, além do sotaque diferente, claro, o fato de a Smurfete ser Smorfina aqui. O gato Cruel leva o nome de Azrael, como nos quadrinhos belgas que originaram o desenho.

O texto da Time Out explica – em uma página inteira e mais uma coluna apenas para a crítica do filme – que desde 2005 o desenho já passava na TV como no original americano (Smurfs) sem qualquer referência a Estrumpfes, uma decisão mercadológica que igualava as grafias usadas no Brasil e em Portugal.

Polêmicas nostálgicas à parte, não estou inclinada a assistir a Smurfs, o filme, embora haja uma campanha em casa para tanto. Em vez disso, vi Bridesmaids ou A melhor despedida de solteira, como foi titulado em Portugal. Gostei muito. É produzido pelo Judd Apatow, que tantas alegrias já me deu, e tem a ótima Kristen Wiig – aquela do Saturday Night Live – como protagonista e roteirista. É engraçado, é sobre mulheres, um tantinho pastelão, mas bonito e humano (embora não goste muito desta última definição). E fofo.

Ainda sobre a Time Out Lisboa, vale dizer que além de excelente guia cultural, nela li pela primeira vez uma crítica (negativa) a um tradutor, dando nome e sobrenome do gajo. Curti.

13 de agosto de 2011

Luz



Tinha já pronto um post sobre palavras que nos fazem sorrir, dizendo que uma das minhas é “luzinhas”. Isso porque o Tico descobriu – e me levou até – um lugar que, ele sabia, era a minha cara: Escadinhas do Duque. Essas escadas, que antes eram a Calçada do Duque, ligavam a zona "chique" da cidade, entre o miradouro de S. Pedro de Alcântara e o Largo Trindade Coelho, e a zona boémia do Rossio, me diz o Google. Almoçamos um dia lá e jantamos no outro. Lindo, lindo.
Só que hoje passamos a tarde/noite em Alfama – meu bairro preferido, acho – e encontramos mais luzinhas. Profusão de bares e restaurantes estrategicamente posicionados sob essas lampadinhas de que tanto gosto, com suas mesas ao ar livre a me convidarem a sentar e sorrir.
Daqui a quatro meses posto um ranking das melhores “luzinhas” da cidade. Reservem.
Na montagem, da esquerda para a direita: Escadinhas do Duque, olhando para o Bairro Alto, durante almoço no Restaurante Solar do Duque; as mesmas escadinhas à noite, durante jantar no Café Buenos Aires, olhando para o Rossio; Escadinhas de São Estevão, onde jantamos, hoje, sardinhas e douradas no Pátio 13. Vale dizer que este último funciona apenas no verão.

7 de agosto de 2011

Entre gafes e beijos



Sexta passada, primeira noite com amigos portugueses. A essa altura já jantamos e aprendi que filés de peixe-galo são gostosos, que açorda é uma espécie de purê feito de pão, ovo, alho, coentro e otras cositas más, que alheira é bem gostoso e não leva alho (na verdade é
um croquete de carne de aves) e que esparrancado é como o espinafre fica quando transformado em purê.
Já fomos do restaurante a um bar – tudo no quintal de casa, Bairro Alto – e tomamos minis (diminutas garrafas de cerveja com a abertura mais inteligente que já vi – depois fotografo uma) e já assistimos a um show de fado na Alfama, onde se apresentou o namorado de uma das amigas que nos acompanha, melhor dizendo, que nos guia.
Agora estamos num bar prestes a fechar e o Tico me entrega um daqueles cartões de propaganda, tipo Mica, dizendo “isso é muito português”. Diante da imagem da morte com um cajado segurando a placa “Se bebeu, deixe-me conduzir” – e de algumas taças de vinho e cerveja na cabeça – eu não titubeio e devolvo:
- É muito literal mesmo!
Risada geral entre os portugueses, que têm ótimo humor e brincam que “não sabemos mesmo fazer analogias, que burros”. Ruborizada, tento consertar a situação, sem sucesso, e o Tico joga a última pá de cal:
- Na verdade eu tava falando da forma da escrever, da ênclise.
+++
Segundos depois estou dizendo “que bonitinho” pra alguma gíria portuguesa e uma das meninas diz que para os portugueses bonitinho é quando nós dizemos bonitinho.
Que doçura.